segunda-feira, 26 de julho de 2010

Minha história prematura - II

Na verdade, minha história é uma história quase-premautra.

Em 2007, minha esposa estava no segundo trimestre de gravidez de nosso terceiro filho. Numa tarde em que eu estava de plantão em uma UTI-neonatal, eu recebi uma ligação dela dizendo que estava na casa de uma prima  e que quando se levantou do sofá, havia uma enorme mancha de sangue no estofado.

Em 2 segundos meu coração gelou. Uma rápida sensação de falta de ar e uma necessidade imediata de por a cabeça em ordem. O que fazer? "Tô indo praí!" Sem me preocupar muito em ser muito claro, falei para minha chefe que passava visita comigo nos recém-nascidos (dentre eles muitos prematuros) e disse qualquer coisa, enquanto pegava minhas coisas e corria para o carro. Fiz em menos de quinze minutos meu trajeto de Duque de Caxias até a Ilha do Governador, sem sequer saber exatamente se eu como eu estava dirigindo.

Eu sabia bem o que era um prematuro! Eu os via 3 dias por semana. Eu via seu pequeno tamanho. Alguns cabiam literalmente inteiros numa de minhas mãos. Alguns eram furados por agulhas, por minhas mãos. Alguns eram entubados pelas minhas mãos. Alguns eram incomodados, examinados, mexidos, pelas minhas mãos. Eu decidia muito sobre sua sobrevida, sua vida e sua qualidade de vida, enquanto eles estavam em incubadoras de acrílico. Eu falava com seus pais, eu comunicava suas limitações e sucessos. Eu comunicava seus óbitos. Não dava para pensar no meu filho cortado, furado, entubado. Aquilo era muito diário para mim. Não dava para imaginar tudo aquilo no meu próprio filho! Em algum momento do trajeto, eu me lembrei que meu filho não nasceria prematuro. Ele nem seria considerado um prematuro. Ele seria tecnicamente um... aborto. Daí pra frente, parei de pensar.

Cheguei à casa da Pati e vi minha esposa sentada sobre uma poça de sangue. Não sabia o que dizer, o que deveria dizer. No hospital, feita a ultrassonografia, descobrimos que o bebê estava bem, mas que havia um imenso lago de sangue entre a placenta e a parede do útero da minha esposa. Em princípio fiquei feliz por saber que aquele sangue todo não era dele, mas da minha esposa, e que ele estava bem. A ultrassonografista foi muito clara em dizer que se o sangramento não parasse, que meu filho seria espelido e minha esposa corria risco de ter uma hemorragia grave. E então o que fazemos para parar o sangramento?, perguntei nem me lembrando que eu havia feito uma faculdade de medicina e deveria saber a resposta. Esperamos, disse e só.

Depois de vinte e quantro horas de repouso hospitalar, e outro ultrassom, fomos para casa. Num resguardo prematuro, minha filha de apenas 1 ano e alguns meses, perdeu prematuramente o colo da mãe (que não podia pegar peso). Meu filho de 4 anos e poucos meses, prematuramente esperava pelo nascimento do irmão, pela liberação da mãe e que a irmã parasse de chorar estridentemente um choro de colo. Prematuramente, eu pensava num filho que poderia sair de sua "bolsa das águas" e que, apesar de desejá-lo, não o queria agora. Prematuramente, minha esposa estava entre perder ou manter um filho. No meu trabalho, cada prematuro em que eu tocava, me sentia inadequado e impreciso. Foram meses difíceis.

Os dias passaram, o sangramento não voltou. As próximas imagens mostraram que a extensão do descolamento da placenta do meu filho diminuiu. O resguardo foi ficando cada vez mais leve. Ele foi deixando de ser aborto, para prematuro extremo, prematuro leve, e então bebê a termo. Nasceu em janeiro do ano seguinte, o Vitor Céu, muito bem, obrigado.

As consequencias de toda aquela prematuridade anunciada, ficaram por algum tempo. A filha perdeu o colo muito cedo, e levou tempo para se recuperar. O mais velho, estava ansioso e teve, como a irmã, que se fiar nas avós e na empregada para brincar, cuidar e descer. Minha esposa, ao voltar para o emprego, descobriu que no processo sua empresa havia sido vendida, e ela não ia com a empresa. Não teve direitos trabalhistas respeitados, e três advogados amarelaram em iniciar um processo trabalhista. Eu nunca mais consegui ser muito objetivo no meu relacionamento com os pais dos prematuros. Ninguém nunca mais foi o mesmo.

Essa não é a história de um prematuro, mas de uma prematuridade. Ficamos todos torcendo para ele ser pelo menos prematuro. Quando ele já podia ser um prematuro, torcemos para ele ser um bebê a termo. Diante de todas as piores imagens de prematuridades sofridas e de insucesso que minha mente médica podia pintar, agradeço a Deus que tenha deixado esse cálice passar de nós. Agradeceria talvez em qualquer situação. Mas foi essa a que nos coube e fico feliz.

Um abraço, Andre Bressan.

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